Monday, October 24, 2005

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A insatisfação pode gerar desânimo e frustração ou, pelo contrário, ser motor - gerador de uma procura frenética de algo que a compense.
A primeira hipótese destrói, aniquila; imobiliza-nos numa mágoa que vai crescendo e nos afoga por completo. Torna-nos amargos, prisioneiros de uma angústia que se vai revelar nas nossas palavras e gestos. A primeira gera ainda grilhetas que nos amarram ao hábito e à rotina impossibilitando-nos de pensar de forma positiva. Envelhece-nos precocemente.
Não é essa a minha insatisfação. Não é desta forma que a resolvo.
Desde sempre insatisfeita, sempre buscando algo. Em mim não existe porém acomodação, e quando a houve, depressa acordei e me revoltei contra a inércia, numa exaltação criadora de movimento.
Quero contrariar a rotina e o hábito. Quero aprender e evoluir e não envelhecer estagnada nos conhecimentos já calcificados. Quero experienciar coisas novas, continuar a crescer e a evoluir de acordo com o meu tempo. Quero participar de forma criativa na construção de um mundo melhor, partilhando as minhas experiências, aprendendo sempre com os outros, adaptando-me quando necessário a novas situações. Quero abrir-me aos outros e permitir que o façam comigo.
Transformar os dias em verdadeiros dias e não apenas na inevitável contagem que nos aproxima do fim

Wednesday, October 19, 2005

Insatisfação

Insatisfeita.
Diria que sou insatisfeita.
Busco sempre mais.
Preencher o tempo,
encher o vazio,
como se o meu tempo
terminasse amanhã
ou hoje mesmo.
Como se uma vida
não bastasse.
Preciso de mais vidas.
Preciso que os dias tenham mais
que vinte e quatro horas.
Tornar-me elástica
e poder viver
em paralelo,
quatro ou cinco tempos
de um tempo
que não me basta.

Thursday, October 13, 2005

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"Há duas tragédias na vida: uma a de não satisfazermos os nossos desejos, a outra a de os satisfazermos"

Wilde , Oscar
in Citador

Wednesday, October 12, 2005

O Erotismo

Os homens mais novos não entendem o... como é que vocês dizem?... o erotismo. Até aos quarenta, caímos sempre no mesmo erro, não sabemos libertar-nos do amor: um homem que, em vez de pensar numa mulher como complemento de um sexo, pensa no sexo como complemento de uma mulher, está pronto para o amor: tanto pior para ele.

André Malraux, 'A Estrada Real' in Citador

Sunday, October 09, 2005

É preciso!

É preciso reaprender
a viver sem ti.
É preciso ver nas manhãs
apenas o nascer de mais um dia,
apenas a frescura do Outono,
sem a eterna esperança de te
encontrar.
É preciso reaprender a viver
sem essa
expectativa
do inesperado.
Sem o desejo
na ponta dos dedos.
Sem o azul dos teus olhos
de mar.
É preciso
saber desistir.
Saber quando é preciso parar
de embalar
um sonho que é só meu.
Enterrar o príncipe
e reconhecer o sapo.
Desistir do sonho
e aceitar o momento
fugaz,
pontual,
paralelo.
Retomar a rotina
é preciso.
Tudo isto é preciso

Saturday, October 08, 2005

Medo

É porque o tempo se escoa
que tenho medo.
É porque,
numa qualquer lógica
que desconheço,
os minutos estão já contados
e a morte já tem hora.
É porque o fim do amor
já aconteceu.
É porque a paixão é fugaz,
temporizada.
Calculada.

Por tudo isto tenho medo.
Medo das horas vazias.
Das paixões desbotadas.
O desejo esvaziado.
Tenho medo de perder a vontade
de tudo.
Medo de viver perdida,
encostada à rotina dos dias sem luz.
De viver um amor calcificado
e inútil.
Oco de sentido.
Amarrada ao hábito.

É porque percorro um caminho
que há muito tracei
que tenho medo.
Do Nada.
De deixar de querer.
De deixar de sonhar.

De tudo perder.

Thursday, October 06, 2005

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"Pega num puritano, sedu-lo, e o seu agradecimento será infinito uma vez convertido à alegre causa dos desinibidos. O maior entusiasta, o mais imaginativo. Só precisa de uma oportunidade para florir"

Irene Hays Fendon
Morality & Sweets, 1823
in "Uma Mulher Nua" de Lola Beccaria

Wednesday, October 05, 2005

Sweet Jane

vivi muito tempo pendurada de um fio
telefónico de uma caixa de correio sem fechadura das mãos
de uns homens que não quiseram encontrar-me

acumulava toda a espécie de comprimidos esquivava
como podia os domingos à tarde vivi
demasiado tempo do outro lado do écran

a olhar o amor pelos anúncios

Pablo García Casado

Tuesday, October 04, 2005

Dias

Há dias em que os olhos estão vazios.
Vazios de carinho.
Extinto o amor.
Uma ruga atravessada no rosto.
O semblante zangado.

Há dias em que nada me faz sorrir.
O traço da raiva.
O rasto da desilusão
cravado na boca.
Os lábios finos,
cerrados
numa linha impossível
de atravessar.
Há dias que nem o azul do mar
consegue suavizar.

Há dias assim.
Como hoje.

Monday, October 03, 2005

Quatro da tarde

Às quatro da tarde!

Chegas com aviso prévio.
Pontual.
Nas mãos o desejo,
nos olhos a urgência.

Às quatro da tarde!

As mãos gulosas,
voluptuosas,
procuram
um no outro
calar o desejo.
As roupas arrancadas
espalham-se no chão.
Palavras doces,
sussurradas,
preenchem o espaço
do silêncio.
Os corpos molhados,
fundidos,
perdidos os olhos
e os limites
na brancura
amarrotada dos lençóis,
na sofreguidão da posse.

Às quatro da tarde!

Emerge de mim a ternura.
Envolvo o teu corpo.
Quero reter-te,
prender-te
nestes últimos momentos.
Mas tu já estás longe!
O desejo calado.
As mãos saciadas.

Às cinco da tarde!

Sunday, October 02, 2005

Manhã

Pela janela vejo a estrada.
A vida corre lá fora,
lenta ainda porque a manhã é breve.

Tomara o ruído da vida lá fora
em vez deste som da tv
que não me deixa sonhar
e me priva do silêncio.

Uma aragem fresca
tempera um sol ainda
pleno de verão.
Do confuso amontoado de edifícios
que se recortam no horizonte
procuro
um pequeno triângulo de azul.

Um quase perdido,
e sempre esbatido,
triângulo de luz
os meus olhos buscam.

A vida corre lá fora
neste domingo de Outono.
O bulício ainda breve,
a brisa ainda fresca.

E eu aqui neste café
que me priva do silêncio,
tentando mergulhar
naquele triângulo de luz,
sonhar aquele pedaço de azul
que se esbate
ao longe.

Saturday, October 01, 2005

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"(...) - Nunca consegui perceber como é esse aparelho - disse.
Então ele explicou-lho a sério com o seu método magistral, enquanto lhe conduzia a mão pelos sítios que ía mencionando e ela deixava-o levar-lha com uma obediência de aluna exemplar. Ele sugeriu, num momento propício, que tudo aquilo era mais fácil com a luz acesa. Ía acendê-la, mas ela deteve-lhe o braço dizendo: "Vejo melhor com as mãos". Na verdade queria acender a luz, mas queria fazê-lo ela e sem que ninguém lho mandasse, e assim foi. Ele viu-a então em posição fetal, além de estar coberta pelo lençol, sob a claridade repentina. Mas viu-a segurar outra vez sem afectações o animal da sua curiosidade, virou-o do direito e do avesso, observou-o com um interesse que já começava a parecer mais do que científico, e disse em conclusão: "É tão feio, tão feio que ainda é mais feio que o das mulheres". Ele concordou e assinalou outros inconvenientes mais graves do que a fealdade. Disse: "É como o filho mais velho: passa-se a vida a trabalhar para ele, e na hora da verdade acaba por fazer o que lhe der na real gana". Ela continuou a examiná-lo, perguntando para que servia isto para que servia aquilo e quando achou que estava bem informada tomou-lhe o peso com as duas mãos, para concluir que nem pelo peso valia a pena e deixou-o cair com uma careta de menosprezo.
- Além do mais, acho que lhe sobram demasiadas coisas - disse".

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel, "O Amor nos Tempos de Cólera, p.172